top of page

Caderno de receitas de artista

Sobre

Editorado por Maíra Marques, Ynaiê Dawson, Thais Medeiros. Publicação impressa lançada no Campus Antropoceno América Latina em 06/12 na EsDi UERJ junto da exposição "Ecologias da Confiança". Apoio: Cidade Floresta, Goethe-Institut Rio, Ambassade de France au Brésil, Juntes na Cultura.

Texto: Gabriella Sales.

Ciclos da comida

 

Vejo nos recortes de cenários encontrados em nossas cozinhas, denúncias sobre a forma como nos relacionamos conosco, com os outros e com o espaço em que habitamos. Da mesma maneira, imagino os caminhos percorridos e histórias coletadas pelos alimentos, desde o momento em que os inserimos no carrinho até o momento em que os restos são lavados em nossas pias. Assim, o supermercado e os espaços culinários tornam-se veículos que comunicam os hábitos que temos cultivado, nossos costumes alimentares e a dispersão do nosso foco na sociedade da produtividade excessiva. Observo os mistérios velados por pacotes de alimentos, louças e objetos do nosso cotidiano para tentar entender o trajeto que temos trilhado até aqui. Gosto de falar sobre comida, encontro nela uma forma de nos conectar com corpos e mentes, logo penso na cozinha como o lugar quase sagrado em que ocorre todo o processo de preparação dessa matéria que nos nutre em diversas áreas. A maneira como os utensílios se dispõem em nossa casa, ocasionada por interferências nossas ou pelo acaso, conversa com a organização e a disponibilidade da nossa atenção. Enxergo na pia os motivos que levam à permanência da sujeira e os sentimentos que a desordem gera. Assim como o acúmulo de louças pode ser razão ou resultado de uma inquietação interior, ele também elucida que o controle sobre as coisas mundanas quase nunca nos pertence e, por isso, torna-se ordinário abraçar a desorganização, por um breve momento. A aceitação da falta de controle é parte do processo de resistência da vida na Terra, é a resiliência em meio à constante mutação que ocorre quando o sujo torna-se limpo e quando o limpo torna-se sujo. Uma vez eu cheguei em casa, olhei para a pia suja e chorei por algum motivo. Depois vi que aquilo poderia ser muito poético se eu quisesse. Por isso penso nos objetos como testemunhos silenciosos que têm muito a dizer sobre nós. Histórias ligadas à comida são construídas na nossa memória desde o momento em que nascemos e por isso não é possível dissociar a existência das nossas emoções dessa relação com elas. Enxergar a cozinha e a alimentação como expressões da linguagem do amor e do autoconhecimento é encontrar refúgio pessoal diário ao mesmo tempo que é se conectar com outras pessoas ao abraçar experiências universais. Observar e pensar sobre a matéria inanimada que nos acompanha todos os dias é criar uma conexão com a sensação de estar diante de algo único e absoluto, mesmo que trivial. A representação da natureza morta nas artes visuais, assim como a louça suja, é eternizar e transformar os objetos do nosso cotidiano em símbolos da relatividade da nossa existência.

Gabriella Sales

bottom of page